Para desenvolver todo o seu potencial, a criança na primeira infância, especialmente aquela que vive em contexto de vulnerabilidade, precisa de múltiplos cuidados, numa ação intersetorial e integrada
Um em cada quatro domicílios (27,6%) no Brasil não tem comida de qualidade ou em quantidade suficiente na mesa. Isso significa dizer que 64,1 milhões de brasileiros convivem com alguma insegurança alimentar. A divisão por grupos de idade feita pela Pnad Contínua Segurança Alimentar 2023/IBGE(2024) mostra que as famílias com crianças na primeira infância, fase que vai até os 6 anos, são as mais afetadas.
Betinho dizia que quem tem fome tem pressa. Essa é uma verdade absoluta. Um dia sem comida para qualquer indivíduo é uma eternidade. No caso da criança pequena, a situação é ainda mais grave. Além de comprometer o bem-estar e a saúde, a falta de alimentos pode causar danos fisiológicos e cognitivos, dado o estruturante e acelerado pico de desenvolvimento neurológico que ocorre na primeira infância.
A criança com fome não aprende, não se desenvolve. Crianças na primeira infância que passam por longos períodos de ingestão insuficiente de nutrientes carregam as consequências dessa fase por toda vida, mesmo que nunca voltem a passar fome. Esses danos podem ser irreversíveis e, em alguns casos, levar à morte.
Crianças que não comem os alimentos essenciais tendem a sofrer mais de doenças infecciosas devido a deficiências imunológicas, além de enfrentarem prejuízos no desenvolvimento psicomotor e perda muscular, com desaceleração, interrupção e até involução do crescimento. Adultos que foram desnutridos quando crianças têm mais riscos de desenvolver doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade. Uma sociedade que priva a criança da alimentação de que ela precisa subtrai dela a perspectiva de um futuro saudável.
A consequência mais prevalente de má nutrição na primeira infância é a baixa estatura e o baixo peso. Essas são medidas preditoras de saúde — ou da falta dela. O risco de morte em menores de 5 anos por diarreia é 9,5 vezes maior em crianças com magreza grave e 4,6 vezes maior em crianças com baixa estatura grave. Nos quadros de pneumonia, o risco de morte é 3,2 e 6,4 vezes maior em crianças com baixa estatura e magreza graves, respectivamente. Estima-se que 45% de todas as mortes em menores de 5 anos sejam causadas por desnutrição (magreza e baixa estatura), incluindo problemas como restrição de crescimento intrauterino, deficiência de vitamina A e zinco e aleitamento materno inadequado.
O Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU pela primeira vez em 2014, graças a uma série de estratégias de segurança alimentar e nutricional aplicadas desde a década de 1990. A comemoração, no entanto, durou pouco. Em 2018, o país já estava de volta a ele, e a pandemia agravou esse quadro. Programas de transferência de renda têm sido eficazes no combate à insegurança alimentar, mas ainda é necessário fazer busca ativa dos milhares de brasileiros invisibilizados, como ribeirinhos, refugiados, povos indígenas e quilombolas.
O artigo 227 da Constituição Federal estabelece que a criança deve ser prioridade absoluta do país. A primeira infância é a prioridade dentro da prioridade. Trata-se de focar na ponta mais frágil primeiro. Inúmeras evidências comprovam que o retorno do investimento na primeira infância é dos mais eficientes, com impactos econômicos positivos pela geração de emprego e renda, melhoria dos indicadores de segurança, saúde e educação, real enfrentamento à pobreza e às desigualdades desde o início da vida.
Tratar a emergência da fome sem olhar para as tantas outras camadas da pobreza sistêmica e multidimensional seria perder de vista a magnitude estrutural dos desafios que temos no Brasil. O combate à fome é um ponto de partida crítico e essencial. Sem ele, não existe caminhada possível na garantia dos direitos fundamentais das crianças. No entanto, para desenvolver todo o seu potencial, a criança na primeira infância, especialmente aquela que vive em contexto de vulnerabilidade, precisa de múltiplos cuidados, numa ação intersetorial e integrada.
Se queremos sumir de vez com a palavra fome de nosso vocabulário, teremos que assumir a responsabilidade de desenvolver uma urgente estratégia sistêmica de combate à pobreza, começando por uma política nacional integrada, intersetorial e interfederativa para a primeira infância, envolvendo a União, os estados, os municípios, os três poderes e os órgãos de controle, além do setor privado, da sociedade civil organizada e dos meios de comunicação.
A criança pequena se desenvolve quando há nutrição adequada, atendimento básico de saúde desde o pré-natal, educação infantil de qualidade, cuidados responsivos, relações afetivas, formação de vínculo, proteção e segurança física e emocional, experiências culturais, vivências na natureza e uma cidade que as acolha. Quando todas as crianças têm esses direitos assegurados, o desenvolvimento humano acontece e o combate às desigualdades que nascem no berço, também.
O Brasil pode liderar a construção de uma abordagem efetiva para quebrar a fome, a pobreza e a miséria que têm mantido geração após geração de famílias reféns da escassez. Em seis anos, uma primeira infância inteira, chegaremos a 2030 e a todas as metas previstas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Dá para fazer muita coisa no combate às iniquidades até lá, mas o senso de urgência é crítico para não nos depararmos com uma realidade ainda mais cruel.
Fonte: Correio Brasiliense
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