O racismo e o sofrimento psΓ­quico

O Banzo Γ© o sofrimento psΓ­quico de quem nΓ£o pertence e nΓ£o se pertence. Dos despossuΓ­dos de voz, estΓ©tica e inteligΓͺncia. NΓ£o por nΓ£o as ter, mas por nΓ£o se lhes permitir ter.

O racismo e o sofrimento psΓ­quico

Falar sobre sua dor, num mundo onde se espera hegemonicamente que se conte sobre seus sucessos e vantagens, Γ© um terreno fΓ©rtil para a emergΓͺncia do sofrimento psΓ­quico.Β  VocΓͺ jΓ‘ deve ter vivido a experiΓͺncia de se queixar de algo para alguΓ©m, confiando completamente a sua dor Γ quela pessoa, e obter como resposta, β€˜ah, mas isso nΓ£o Γ© bem assim, vocΓͺ estΓ‘ exagerando, deixe de se vitimizar.’

Quem jΓ‘ sentiu na pele essa desautorizaΓ§Γ£o do sofrer, sabe do que estou falando. O sofrimento psΓ­quico, nΓ£o tem um nome que o defina. E quando nΓ£o hΓ‘ um nome validado para o que se sente, Γ© quase certo que quem escuta nΓ£o acolha aquele sofrimento, nΓ£o o legitime. Quando alguΓ©m conta que estΓ‘ com cΓ’ncer, por exemplo, que Γ© uma doenΓ§a socialmente reconhecida como geradora de sofrimento, Γ© fΓ‘cil e simples que as pessoas se solidarizem com quem sofre. Ou se vocΓͺ disser que tem depressΓ£o ou sΓ­ndrome do pΓ’nico, patologias reconhecidas inclusive pelas ciΓͺncias, Γ© possΓ­vel que algumas pessoas acolham a sua dor. Γ‰ importante mencionar que quando falo sobre sofrimento socialmente reconhecido, estou implicando o Estado nesse reconhecimento.

Agora, se vocΓͺ contar que foi vΓ­tima de discriminaΓ§Γ£o e preconceito, que foi humilhado, hostilizado, ofendido, que se sentiu perseguido ou foi agredido, aΓ­ sΓ£o outros quinhentos. Esse tipo de sofrimento depende do reconhecimento do outro. Depende da leitura que serΓ‘ feita da narrativa de quem sofre. Depende basicamente do lugar que o corpo social darΓ‘ a esse sofrimento. Se a dor narrada nΓ£o tiver sido reconhecida no tecido social, ninguΓ©m vai se ocupar dela, o estado nΓ£o vai cuidar, as instituiΓ§Γ΅es jurΓ­dicas nΓ£o vΓ£o defender, a escola nΓ£o vai abordar, o sistema de saΓΊde nΓ£o vai atender, estrangulando ainda mais a possibilidade de se libertar daquele sofrimento.

Esse preΓ’mbulo Γ© para falar de racismo. O racismo nosso de cada dia. Se o sofrimento psΓ­quico demanda reconhecimento para ser tratado, como ficam as pessoas que sofrem por serem vΓ­timas de racismo? NΓ£o consta no DSM5 a descriΓ§Γ£o desse sofrimento. Muito raramente Γ© tema nas grades curriculares das escolas, menos ainda nas instituiΓ§Γ΅es de ensino superior. NΓ£o hΓ‘ campanhas nas grandes mΓ­dias que esclareΓ§am essa forma de sofrimento.

O mΓ‘ximo que se tem de divulgaΓ§Γ£o sobre o sofrimento que as pessoas, a partir da cor de sua pele, padecem, sΓ£o os casos midiΓ‘ticos de tragΓ©dias envolvendo essa populaΓ§Γ£o.Β  Ainda assim, sΓ£o mostrados apenas quando a tragΓ©dia Γ© suficientemente interessante para dar audiΓͺncia. Nunca a dor das pessoas Γ© tratada com seriedade e compromisso ou Γ© associada ao racismo. As polΓ­ticas pΓΊblicas nΓ£o se ocupam disso.

As experiΓͺncias de quem desde crianΓ§a Γ© discriminado pelo tom de sua cor de pele vai moldando seu modo de sofrer.Β  A formaΓ§Γ£o da nossa subjetividade Γ© atravessada pelas experiΓͺncias inaugurais com o outro, determinando de que forma, mais tarde, vamos lidar com as dificuldades, os conflitos e as perdas. Quem sofre com o racismo desde o nascimento, ao vivenciar a discriminaΓ§Γ£o dos pais, dos familiares, dos antepassados, tem a sua subjetividade esculpida por essas experiΓͺncias e sua compreensΓ£o de mundo terΓ‘ como pano de fundo a violΓͺncia do que viu, ouviu e sentiu.

O racismo rasga e invade todas as dimensΓ΅es da existΓͺncia e se materializa no dia-a-dia de quem sofre toda sorte de estigma, de discriminaΓ§Γ£o e injustiΓ§a sem que sua dor seja reconhecida, inscrita e por isso mesmo nΓ£o considerada ou tratada.

Por outro lado o negro sabe qual a sua dor. Desde que conheceu a opressΓ£o colonialista o Banzo ganhou outra dimensΓ£o. A dor do banzo Γ© a dor da perda no mais amplo espectro. Γ‰ dor da saudade de uma terra que nΓ£o se chegou a conhecer, uma Wakanda onde nunca se pode pisar. O desejo da retornar Γ  condiΓ§Γ£o de normatividade. De ser maioria em nΓΊmero e em representatividade, sentido.

O Banzo Γ© o sofrimento psΓ­quico de quem nΓ£o pertence e nΓ£o se pertence. Dos despossuΓ­dos de voz, estΓ©tica e inteligΓͺncia. NΓ£o por nΓ£o as ter, mas por nΓ£o se lhes permitir ter.

Quando o Estado invisibiliza o sofrimento negro como especΓ­fico da condiΓ§Γ£o do negro dentro de uma estrutura que o ignora para o bem e para o bom, mas o destaca para o mal e para o mau, nesse momento o racismo estrutural se consolida como verdade incontestΓ‘vel.

Por Marcia Noczynski e Cristiane Alves, Do GGN

(Foto: Imagem retirada do site GGN)

Fonte: Portal GeledΓ©s

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